quarta-feira, 19 de setembro de 2012

"Síndrome patológica de derrame cerebral súbito".

Chegou em casa segurando um envelope já rasgado na mão pois a ansiedade junto do lacre quase que inviolável forçaram-lhe a rasgar um lado controverso ao do senso comum. No envelope violado controversamente, havia um resultado de seu último exame e a declaração de um médico que atestava resumidamente que não lhe restava mais do que algumas dezenas de dias de vida. O motivo da “terminalidade” seria um câncer pancreático, maligno e tardiamente diagnosticado, causado pelo seu vício casual em vodcas importadas, ou fosse eventualmente outra doença terminal qualquer, uma síndrome patológica de derrame cerebral súbito, incurável e rara que amaldiçoasse sua genética talvez.
No quarto, sentou no fim da cama com o fim dos antebraços apoiados em suas coxas. Ficou olhando fixamente e por acaso para a maçaneta da última gaveta do seu criado mudo, enquanto ainda segurava aquele envelope já indesejada e porventura pensava em alguma coisa. Alguns dez minutos se passaram e ele se despertou, soltou o envelope, que se acomodou no chão, e do fim da cama foi até o começo dela. Perto do criado mudo abriu não a última, mas a primeira gaveta, pegou uma caixa de clonazepam e tirou três cartelas de oportunos comprimidos. Como que se tivesse esquecido de proposito a quantidade segura prescrita pelo médico, tirou os comprimidos um a um, até que não coubessem mais na mão, levou todos até a boca, mastigou até que não restasse nenhum inteiro e bebeu o resto do copo d’água que tinha usado noite passada para tomar dois dos comprimidos recíprocos aos vinte e oito que agora eram uma mistura pastosa na sua boca e engoliu com dificuldade. Lembrou que havia meio litro de Stolichnaya gelada o esperando na cozinha, se levantou e caminhou calmamente até o refrigerador, pegou a ilustre vodca e se serviu com um dedo ou dois no copo que ainda segurava desde o quarto, bebeu não como que se fosse o último gole, mas só como se fosse mais um triunfante gole. Ainda com a mesma garrafa quase cheia e o copo agora vazio nas mãos, seguiu até a sala, ligou sua TV num canal de esporte impreciso, sentou-se confortavelmente na poltrona e assistiu algum jogo de futebol enquanto tomava um gole e outra da vodca, até que perpetuamente dormiu.
Saber que a sua data de validade estava tão próxima de sua vida o aterrorizava não a cada mês, semana ou dia, mas sim a cada instante. O suspense de morrer covardemente em trinta minutos de uma overdose indigna era menos doloroso que viver num medo progressivo que durasse cada segundo de uma semana ou de dois meses. Ou talvez o pequeno primórdio de sua síndrome patológica de derrame cerebral súbito aconteceu quando ele se sentou na cama e a deterioração de alguns neurônios afetou justamente a recordação da dosagem segura de clonazepam prescrita pelo médico.

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